terça-feira, agosto 20, 2002



A Guerra Antecipada


Por VITAL MOREIRA
Público, Terça-feira, 20 de Agosto de 2002


A guerra contra o Iraque é afinal uma escapatória, uma guerra de Israel contra o Iraque, por interposto aliado preferencial. O Iraque é vítima da incapacidade israelita para subjugar os palestinianos.

Tudo parece indicar que os Estados Unidos vão mesmo atacar o Iraque, naquilo que no novo jargão imperialista de Washington se chama uma "guerra preventiva". O "New York Times" publica regularmente a retórica guerreira e os planos militares. Só falta saber quando.

Ao contrário do que sucedeu há onze anos, na que ficou conhecida por guerra do Golfo, quando a ocupação e anexação do Kuwait justificou plenamente a intervenção da coligação internacional liderada pelos Estados Unidos contra o Iraque, desta vez não se vêem razões que justifiquem novo ataque à face do direito internacional. O Iraque não se prepara manifestamente para atacar novamente nenhum dos seus vizinhos. Não é acusado de actos internos de genocídio ou algo de semelhante, que justificaram, por exemplo, a intervenção no Kosovo. Não se conseguiu estabelecer nenhuma relação entre o regime de Saddam Hussein e o terrorismo internacional, nomeadamente com as forças da Al Qaeda.

Aliás, o Iraque continua sujeito a pesadas sanções internacionais decretadas pelas Nações Unidas, que limitam severamente a sua capacidade económica e militar (para não falar das trágicas consequências em matéria de nutrição e saúde da população). Mais de metade do país encontra-se numa situação de semi-soberania, dadas as limitações militares impostas pelos aliados, com "áreas de exclusão" interditas a Bagdad.

As razões difusamente invocadas por George Bush e pelos seus colaboradores mais belicosos (como recentemente Condolezza Rice em Londres) são tudo menos convincentes.

Não procede o argumento democrático, que consistiria em pôr termo à ditadura de Saddam Hussein e implantar um regime democrático em Bagdad. Seguramente que isso seria um bem. Só que o mundo está cheio de ditaduras, algumas das quais - e das mais duras - se contam entre os amigos e aliados dos Estados Unidos, mesmo no próprio campo árabe, bastando referir a Arábia Saudita e os demais Estados do Golfo. Vão os Estados Unidos atacar todas as ditaduras, a começar, por exemplo, pela China, para estabelecer um mundo de democracia universal? Infelizmente, o currículo dos Estados Unidos nesta matéria, recheado como está de derrubes de regimes democráticos e de apoio activo a regimes ditatoriais por todo o mundo, desde a América Latina (Chile de Pinochet, por exemplo) à Ásia (Indonésia de Suharto, por exemplo), aconselharia alguma prudência na invocação deste argumento. De resto, por mais que hoje devamos reclamar e apoiar um direito de todos os povos a serem democraticamente governados, tal não é suficiente para justificar uma agressão militar, pelo menos na fase actual do direito internacional, se as ditaduras não forem responsáveis por qualificados crimes contra a humanidade (genocídio, por exemplo).

O argumento de que o Iraque estaria a construir "armas de destruição maciça" também é pouco convincente, pelo menos por ora. Primeiro, porque não foi apresentada até agora nenhuma prova relevante de que isso está a suceder, não sendo crível que isso ocorresse sem ser detectado pelos sofisticadíssimos meios de informação norte-americanos. Segundo, porque ainda é direito de cada país (mesmo com regimes ditatoriais) produzir armas para defesa própria, dentro das limitações internacionais (proibição de armas biológicas, não proliferação de armas nucleares). Terceiro, porque vários países se têm dedicado à produção de armas de destruição maciça, incluindo armas nucleares, sem com isso suscitarem nenhuma intervenção internacional, mesmo quando existe um real perigo de utilização delas contra os vizinhos (basta referir o caso do Paquistão, uma das ditaduras agora protegidas pelos Estados Unidos, e o seu conflito com a Índia, por causa de Caxemira).

Os motivos da sanha norte-americana contra o Iraque têm de se buscar noutra sede, uns de ordem interna, outros de ordem internacional. Internamente, os círculos mais extremistas norte-americanos nunca engoliram não se ter levado até ao fim a guerra do Golfo, com a liquidação do próprio regime de Saddam Hussein. Ironicamente, o então Presidente Bush, que ganhou a guerra, perdeu logo de seguida as eleições para o segundo mandato presidencial, enquanto o derrotado Saddam continua no poder onze anos depois. Bush filho quer terminar a obra inacabada de Bush pai. Depois, decorrido um ano sobre os trágicos acontecimentos de 11 de Setembro, trata-se de vingar em terceiros o despeito pelo relativo insucesso da operação contra o terrorismo internacional, que justificou a guerra do Afeganistão, visto que o seu principal objectivo - a liquidação de Bin Laden e da sua organização - continua sem ser atingida. Terceiro, perante os crescentes problemas da economia americana - com contínua acumulação de escândalos empresariais, com alguns salpicos de lama sobre os círculos do poder de Washington, incluindo o próprio Bush - e com eleições à vista, uma expedita intervenção militar externa, com sucesso garantido à partida, não poderia ser melhor motivo de distracção da opinião pública.

Mas a grande razão para o ataque ao Iraque tem de se procurar noutro lado, no conflito israelo-palestiniano. Com razão ou sem ela, este país é tido como o principal apoio moral e financeiro da causa palestiniana. Apesar da vastidão e desproporção dos meios postos em acção por Israel, com total apoio dos Estados Unidos, Sharon não está perto de vencer a sua actual guerra contra os palestinianos. A situação está a tornar-se insustentável para Israel, tanto sob o ponto de vista económico como político. Sem saída à vista, Israel precisa desesperadamente de vergar a resistência palestiniana. O recente apelo de Sharon para que não seja adiado o ataque norte-americano a Bagdad testemunha o primacial interesse israelita nessa intervenção.

Conivente desde o início com as posições israelitas, desde logo pelo poderoso "lobby" judaico norte-americano (aliás bem representado entre os "falcões" de Bush), o impasse militar de Israel é também uma derrota dos Estados Unidos. A guerra contra o Iraque é afinal uma escapatória, uma guerra de Israel contra o Iraque, por interposto aliado preferencial. O Iraque é vítima da incapacidade israelita para subjugar os palestinianos. Esmagado o Iraque, com o apoio de alguns Estados árabes fantoches (como os do Golfo) e com a passividade de outros, essencialmente dependentes da ajuda norte-americana (como o Egipto), Israel ficaria com o caminho livre para tentar dar a "solução final" à questão palestiniana, a solução de que o extremismo judaico já fala sem pudor, e que consiste em anexar definitivamente os territórios ocupados e em expulsar os palestinianos para os países árabes vizinhos, enterrando definitivamente a ideia de um Estado palestiniano.

Notas à margem

1. Depois de, com bons argumentos, ter posto fim ao regime de crédito bonificado para a aquisição de habitação - pelo qual o Estado suportava um parte dos juros dos respectivos empréstimos bancários -, é perfeitamente obsceno que o Governo tenha decidido manter a bonificação para os empréstimos destinados à construção dos estádios de futebol para o Euro 2004. Assim se vai esvaindo a honra e o crédito político da ministra das Finanças.

2. O chamado Tribunal de Direitos Humanos de Jacarta absolveu o chefe da polícia de Timor-Leste na altura dos massacres antes e depois do referendo da independência e condenou a três ridículos anos de prisão o antigo governador do território. Perante tal fantochada, razão tinham os que defenderam um tribunal penal internacional especial, como os do Ruanda e da ex-Jugoslávia. Mas essa solução só vale para os culpados dos Estados-párias e não para aquelas ditaduras que gozaram até ao fim do apoio e da cumplicidade internacional, como a da Indonésia...




salamandrine 10:05



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